Sphaera Mundi: A Ciência na Aula da Esfera. Manuscritos Científicos do Colégio de Santo Antão nas Colecções da BNP
Galeria de Exposições da Biblioteca Nacional de Portugal (2º Piso)
21 fevereiro até 24 abril 2008
Comissão Científico: Henrique Leitão. Colaboração dos investigadores Samuel Gessner e Bernardo Mota
Descrição
A exposição mostra, através dos fundos de Reservados da BNP, principalmente da colecção de Manuscritos, a grande vitalidade de uma instituição estreitamente ligada ao ensino e prática científicos em Portugal: a “Aula da Esfera” do Colégio de Santo Antão. Parte da rede supranacional de centros de ensino da Companhia de Jesus, foi não só local de passagem dos melhores professores da época como foco de intercâmbio com os mais avançados centros científicos europeus, formando durante quase dois séculos os quadros técnicos e científicos de que o país necessitava.
O colégio, instituição situada entre a escola elementar e a Universidade, é um dos símbolos do labor jesuíta e uma resposta pragmática às novas necessidades de conhecimento determinadas por um universo em expansão, satisfazendo simultaneamente as necessidades de formação dos novos membros da Companhia e dos jovens das classes sociais altas que buscavam novos métodos pedagógicos e modelos educativos renovados. À data da extinção da Companhia de Jesus (1773) existiam já cerca de 800 colégios espalhados pelos vários continentes.
O colégio jesuíta de Santo Antão tem como característica particular ter sido a única instituição a assegurar ininterruptamente, durante cerca de 170 anos (finais do séc. XVI a meados do séc. XVIII), o ensino de disciplinas físico-matemáticas em Portugal, leccionadas por alguns dos mais reputados mestres europeus: Cristoph Grienberg (1564-1636), Cristoforo Borri (1583-1632) ou Giovanni Paolo Lembo (1570-1618) e nacionais como João Delgado (1553-1612), Luís Gonzaga (1666-1747), Inácio Vieira (1678-1739) entre outros. Embora o seu nome apele directamente ao ensino da Cosmografia e Astronomia – que utilizavam como obra introdutória o Tratado da Esfera, de João de Sacrobosco, redigida no séc. XIII e desde então largamente comentada e parafraseada – também o ensino da Geometria, Aritmética, Náutica, Óptica e outros temas científicos ou teórico-práticos ali tinha lugar.
Henrique Leitão, comissário científico desta exposição, destaca o papel privilegiado desta “Aula” como: ponto de entrada das novidades científicas (como o telescópio e o novo mundo que ele descobriu, as novas técnicas matemáticas); local único de ensino e aplicação de algumas disciplinas emergentes como a Estática, a Mecânica teórica, ou a Óptica geométrica; o Colégio de Santo Antão era um centro de investigação verdadeiramente internacional que sempre beneficiou dos recursos e contactos da rede da Companhia de Jesus em que se encontrava integrado.
As notas e apontamentos dos alunos, e outros trabalhos manuscritos que sobreviveram e integram a colecção de manuscritos da BNP, constituem fontes indirectas para o conhecimento dos professores que leccionaram no Colégio e os seus ensinamentos. Embora este Colégio seja estudado e conhecido, a sua real dimensão e importância não se encontra ainda suficientemente divulgada junto do grande público que pode também, simultaneamente, avaliar sob uma outra perspectiva a riqueza patrimonial da BNP.
Catálogo
O catálogo que acompanha a exposição é a parte visível de um projecto mais amplo que o sustenta e que tem sido o esforço de inventariação, catalogação e estudo dos manuscritos científicos da BNP, precedido por estudos parcelares que dão conta das actividades da “Aula da Esfera” e do seu impacto cultural. A iniciativa conta com o apoio mecenático da REN – Redes Energéticas Nacionais.
A "Aula da Esfera" do Colégio de Santo Antão, 1590-1759
A "Aula da Esfera" do Colégio de Santo Antão, em Lisboa, foi uma das mais marcantes instituições de ensino e de prática científica em Portugal, tendo sido, durante quase dois séculos (entre 1590 e 1759), o principal centro de formação dos quadros técnicos e científicos (cosmógrafos, engenheiros, etc.) de que o país necessitava. Integrada na vasta rede supranacional de centros de ensino da Companhia de Jesus, foi também o local de passagem de professores das mais variadas proveniências, o foco de intercâmbio com os mais avançados centros científicos da Europa, a porta de entrada em Portugal dos mais importantes descobrimentos da nova ciência.
A exposição Sphaera Mundi: A Ciência na Aula da Esfera procura mostrar a vitalidade e riqueza desta singular instituição científica, em áreas tão diversas como a matemática, a astronomia, a cosmografia, a estática e a hidráulica, a óptica, a engenharia militar, a construção de instrumentos, etc., bem representadas na colecção Manuscritos da BNP.
O Ensino Científico na Companhia de Jesus
Em meados do século XVII a Companhia de Jesus era responsável por várias centenas de centros de ensino na Europa (colégios, universidades, seminários), frequentadas por algumas centenas de milhar de alunos. Embora o ensino de temas religiosos, filosóficos e de humanidades dominasse a actividade dessas instituições, concedia-se também em muitas delas uma atenção importante ao estudo de matérias científicas. Além disso, as necessidades apostólicas em algumas missões (na China, por exemplo) acentuaram a importância do ensino das ciências em escolas jesuítas. A Companhia de Jesus teve assim uma acção de grande relevo no ensino e na disseminação de conhecimento científico, tendo contado entre os seus membros com vários cientistas de renome e muitos professores famosos. Foram também de autoria jesuíta muitos dos mais célebres e influentes compêndios científicos usados por toda a Europa, alguns dos quais aqui se expõem.
Astronomia & Cosmologia
O debate cosmológico do início do século XVII entrou em Portugal pelo Colégio de Santo Antão. São muitos os manuscritos que testemunham as aulas e as discussões sobre assuntos como a fluidez do céu, os satélites de Júpiter, a origem dos cometas, a natureza da matéria celeste, o ordenamento dos orbes celestes, etc. O mais tardar em 1615 as revolucionárias observações de Galileu já eram ensinadas no colégio, nas aulas de Giovanni Paolo Lembo. Mas outros mestres da "Aula da Esfera", como Borri, Gall, Stafford e Fallon abordaram também com muita actualidade essas questões. São de notar em especial as explicações acerca das fases da Vénus e da superfície da lua (com montes e vales), em diversos manuscritos, o que demonstra a imediata apropriação pelos mestres da "Aula da Esfera" das novidades apresentadas no Sidereus Nuncius de Galileu. Em consequência destes debates os mestres de matemática do Colégio de Santo Antão foram levados a rejeitar o modelo cosmológico de Ptolomeu, discutindo o modelo de Copérnico e abraçando a descrição planetária de Tycho Brahe.
Geometria & Trigonometria
Os programas jesuítas estipulavam que o ensino da matemática se iniciasse pela geometria, seguindo os primeiros livros dos Elementos de Euclides. Nos cursos da "Aula da Esfera", a par do estudo de geometria plana, dedicava-se também sempre muita atenção à trigonometria plana e esférica, essencial em muitas aplicações - como por exemplo a agrimensura e a fortificação -- bem como em muitos cálculos de astronomia e de navegação. Os mais importantes compêndios de geometria e trigonometria que circularam em Portugal nos séculos XVII e XVIII foram escritos por professores da "Aula da Esfera". Além do ensino dos conceitos fundamentais de geometria e trigonometria, tudo leva a crer que foi no Colégio de Santo Antão que se introduziram pela primeira vez no nosso país várias técnicas matemáticas avançadas, como por exemplo os logaritmos, poucos anos após a sua invenção (por Napier, em 1614).
Fortificação & artilharia
As guerras, os frequentes conflitos entre países europeus, e os importantes desenvolvimentos das artes militares que marcaram os séculos XVI e XVII estimularam o surgimento de uma ciência da fortificação e da engenharia militar de base matemática e geométrica. Os jesuítas tinham plena consciência da importância estratégica desta ciência e envolveram-se em aulas sobre estes assuntos. O primeiro professor da "Aula da Esfera" de quem se tem uma prova disso foi Ignace Stafford que deixou, em manuscrito, um tratado sobre máquinas de guerra e ordenamento das tropas, e um tratado muito desenvolvido de fortificação, nos anos trinta do século XVII. Com as guerras de restauração e a necessidade de defender o território nacional, novamente independente de Espanha, a "Aula da Esfera" desempenhou um papel central na formação de engenheiros e especialistas de arquitectura militar. Entre os seus mestres contou-se o flamengo Jan Ciermans (Cosmander) que se distinguiria como engenheiro militar, e entre os antigos alunos sobressai Luís Serrão Pimentel, famoso engenheiro militar e uma das figuras mais eminentes da ciência portuguesa de seiscentos.
Náutica & cosmografia
A cosmografia foi uma disciplina central da Europa do século XVI, abrangendo questões da geografia (descrição física, climas, a determinação de latitude e longitude, etc.), de cartografia e também a medição do tempo (os relógios de sol, etc.). A cosmografia servia também como disciplina propedêutica ao estudo da náutica e navegação teórica, assuntos que foram longamente tratados na "Aula da Esfera". Na verdade, como já foi notado por vários historiadores, a "Aula da Esfera" foi o mais interessante centro de ensino de temas náuticos em Portugal durante todo o século XVII e mesmo depois. Nos manuscritos provenientes destas lições são muitas vezes analisados problemas relativos à confecção e uso da carta de marear e dos globos, todo o tipo de instrumentos náuticos, e tratam-se inclusivamente muitas questões acerca das propriedades da linha de rumo, com especial referência às soluções dadas por Pedro Nunes no século anterior.
Mecânica & óptica
Entre os manuscritos da "Aula da Esfera" encontram-se interessantíssimos textos de disciplinas físicas como a óptica geométria e a mecânica teórica. A merecer uma menção muito particular são as aulas de Heinrich Uwens sobre Estática, preservadas num manuscrito que é possivelmente o mais importante e completo texto sobre o assunto em português até ao século XIX. Igualmente excepcionais e sem rival na produção portuguesa da época e de muitas décadas depois, são as excepcionais notas de Óptica do Pe. Inácio Vieira. Na verdade, a óptica geométrica - com as disciplinas associadas de perspectiva e cenografia - teve na "Aula da Esfera" um local de eleição para o seu ensino e a sua prática, não se conhecendo outra instituição portuguesa onde se tenham produzido textos com o mesmo nível de desenvolvimento e profundidade.