Ciência, Educação Técnica e a Construção do Liberalismo em Portugal: O caso da Escola Politécnica de Lisboa (1837–1911)
Equipa
Luís Miguel Carolino (IR), Ana Simões, Ana Carneiro, Teresa Salomé Mota, Vanda Leitão, Pedro Raposo
Período
2010–2013
Financiamento
FCT/MCTES, HC/0084/2009
Descrição
Desde a publicação, em 1937, de Escola Politécnica de Lisboa: Primeiro Centenário da Escola Politécnica (1837-1937), livro comemorativo do primeiro centenário da instituição, nenhuma outra análise global foi proposta sobre a história da Escola Politécnica de Lisboa (EPL). Alguns estudos de caso focaram o ensino de uma disciplina científica em específico e/ou o trabalho de um professor em particular, ao passo que outros estudos se limitaram a lamentar aquilo que os seus autores perspectivaram como a ausência de uma escola de investigação na EPL. Contudo, não existe nenhum estudo que tenha focado o ensino e a aprendizagem de ciências no seu conjunto na EPL, a relação entre pedagogia e prática científica ou mesmo os valores políticos e sociais transmitidos através do ensino científico e técnico promovido nesta instituição.
Este projecto tem como ambição responder a esta lacuna historiográfica, associando, para isso, uma equipe multidisciplinar de historiadores da ciência, incluindo consultores internacionais e estudantes de mestrado e doutoramento, e propondo-se desenvolver uma multiplicidade de perspectivas historiográficas, desde o estudo de uma teoria concreta à investigação do contexto tecnológico e social do ensino e prática científica na EPL.
O ensino de ciências na EPL constitui um objecto de estudo muito significativo. Tal como em outros países do sul da Europa, em Portugal, o século XIX afirmou-se como o período crucial de modernização do aparelho de Estado e de desenvolvimento tecnológico e das infraestruturas do país. Paralelamente, nesse período a sociedade portuguesa deu importantes passos no sentido de uma secularização efectiva. Ainda que os especialistas em história económica tendam a afirmar que o processo de industrialização não foi bem sucedido no Portugal oitocentista, a iniciativa estatal de criar e desenvolver infraestruturas como os caminhos de ferro, a cartografia geral do país ou o estabelecimento de um sistema fiscal uniforme requereu a existência no país de um corpo técnico e científico habilitado. Parte significativa da formação científica e técnica desses profissionais teve lugar na EPL.
Fundada em 1837 e inspirada na École Polytechnique francesa, a EPL foi criada com o objectivo de fornecer uma formação científica preliminar aos futuros oficiais, aos engenheiros do exército e da marinha, bem como aos engenheiros civis e, ainda, aos futuros médicos e farmacêuticos. Sem surpresa, as disciplinas matemáticas ocupavam um lugar central nos curricula EPL, sendo complementadas pela astronomia, física, química e ciências naturais. Os ex-estudantes da EPL (os 'polytechniciens' ), tornando-se funcionários públicos ou enveredando pela carreira militar, dariam forma ao corpo técnico do Estado, animando instituições estatais-chave como a 'Direcção-Geral das Obras Públicas e Minas'.
Numa sociedade em que a noção de cidadania tinha sido reconhecida na sequência da Revolução Liberal de 1820, os quadros técnicos do Estado assumiram um papel cada vez mais importante no xadrez político e aspiraram a posições sociais de maior prestígio. As competências técnicas e científicas destes “burocratas cientistas” (a maioria deles ex-estudantes da Politécnica) garantiram-lhes uma posição sólida no aparelho de Estado. Estes “burocratas” tornaram-se-iam aquilo a que Pierre Bourdieu chamou a “noblesse d'État” (BO 1989). Oposta à “nobreza de sangue”, a “noblesse d'État” portuguesa distinguiu-se, também, das elites intelectuais tradicionais cuja formação universitária era de cariz mais filosófico e meditativo.
A institucionalização do ensino técnico em Lisboa e o reconhecimento social atingido pelos “burocratas cientistas” teve, também, importantes consequências no que diz respeito à organização e classificação do conhecimento científico em Portugal. É inquestionável que a organização das cadeiras na EPL teve um papel de relevo na identificação e consolidação das áreas científicas como as disciplinas matemáticas, astronomia, física, química, mineralogia, geologia, zoologia, botânica e economia. Assim, é pelo carácter eminentemente prático do ensino na EPL que se explica que a astronomia se afirme, em Portugal, como uma área intimamente ligada à geodesia.
Este projecto parte do pressuposto que o conhecimento e a prática científica são historicamente construídos e obedecem a códigos sociais. Deste modo, concebe-se o ensino de ciências não como uma transmissão passiva de conhecimentos, mas antes como uma actividade pedagógica activa envolvendo a comunicação de um corpo de conhecimentos, de práticas de treino técnico e a transmissão de um sistema de valores, normas de comportamento e competências práticas.